ARTIGO: QUANDO O ESTADO FALHA, A MORTE NÃO É O ACASO
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados. ** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal Ubaense online
Quando o Estado falha, a morte não é acaso
Bruno Pinheiro – Conselheiro Tutelar de Ubá
Na semana passada acompanhei, por horas, a ocorrência de um adolescente de 16 anos apreendido em uma delegacia, sobre o qual recaíam atos infracionais análogos ao porte ilegal de arma e ao tráfico de drogas. Buscamos, dentro dos limites legais e humanos, uma saída que rompesse o ciclo já conhecido: apreensão, liberação e retorno ao mesmo contexto de risco.
Não foi possível.
A inércia do Estado — aqui representado por suas instituições e agentes — falou mais alto. Nenhuma medida efetiva foi adotada. O adolescente foi devolvido exatamente ao ambiente do qual havia sido retirado. Dias depois, a notícia que nenhum integrante da rede de proteção deveria naturalizar: aquele mesmo adolescente foi assassinado no local onde vivia, junto a outros dois adultos, em meio a um conflito brutal entre facções criminosas que disputam o controle do tráfico na cidade.
Diante disso, a pergunta que ecoa é inevitável: de quem foi a culpa? Foi uma escolha individual, isolada, descolada de qualquer contexto? Foi falta de orientação familiar? Foi “desvio de caráter”, como alguns insistem em afirmar? Durante o tempo em que estive ao seu lado, sentado em um ambiente hostil — que muitos defendem ser assim para “ensinar” ou “inibir” — o que vi foi um adolescente tomado por revolta e descrença. Não uma falta de fé em Deus, mas a perda total de esperança de que algo pudesse mudar no plano concreto da vida. Ele me relatou vivências da infância incompatíveis com qualquer noção de proteção integral.
Passou pelo acolhimento institucional. Houve tentativa de reintegração familiar, sem êxito. O pai era ausente. A mãe, segundo suas próprias palavras, não fazia parte de sua vida. Disse, com todas as letras, que era um adolescente sem família na cidade. Como integrante da rede de proteção, o sentimento que permanece é o da impotência diante de estruturas que não entregam aquilo que a lei promete. O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro, técnico, avançado.
No papel, é exemplar. Na prática, esbarra em omissões, falta de vagas, decisões tardias e responsabilidades diluídas. E é preciso dizer com honestidade: falhamos. Falhamos enquanto sistema. Falhamos enquanto rede. Falhamos em diferentes momentos da trajetória desse adolescente. Ao dizer “falhamos”, incluo a mim e a todos que, de alguma forma, não conseguiram — ou não souberam — oferecer uma resposta eficaz ao longo do tempo. Isso não significa afirmar que todos os adolescentes em conflito com a lei são meras “vítimas da sociedade”. As histórias não são iguais. As escolhas existem.
Mas também é verdade que, por trás de muitos adolescentes rotulados apenas como “menores infratores”, existiu uma criança abandonada, privada de vínculos, que perdeu o contato com suas raízes e que não encontrou no Estado aquilo que lhe faltou no ambiente familiar: proteção, pertencimento e perspectiva. Enquanto não houver um novo posicionamento — mais realista, mais responsável e menos burocrático — outros adolescentes seguirão o mesmo caminho. Não por destino, mas por repetição. Não por escolha livre, mas por ausência de alternativas reais. E cada nova morte seguirá sendo tratada como estatística, quando, na verdade, deveria ser encarada como prova concreta de que o sistema, mais uma vez, chegou tarde demais.
